segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

P. 43 Futuro Escorregadio

FUTURO ESCORREGADIO

A ordem mundial se desenhará em 2017 como resultado de vários tabuleiros regionais de poder, com os EUA e a China em patamar superior. Melhor seria qualifica-la como desordem mundial.

O DESAFIO E A BELEZA da história não transcorrida estão no fato de que ela se abre a muitas alternativas e frequentemente o provável se mostra ilusório, o que pareceria bom termina mal e o mal nem sempre é tão grande quanto se imaginava que fosse. É melhor, contudo, ter a ilusão de que é possível vislumbrar algo do futuro para construir no presente as vias que podem levar até ele.
  O ano de 2016 termina com nuvens mais carregadas do que as herdadas de 2015. Com o fim da Guerra Fria, especialmente depois da queda do Muro de Berlim, Estados Unidos e China começaram a dialogar. Do mesmo modo, a Europa foi-se integrando politicamente, e a Rússia, sem se conformar, parecia "contida". Tinha-se a impressão de que os conflitos bélicos seriam localizados. Assim seria a tensão entre Israel e seus vizinhos, da Índia com o Paquistão, ou as alterações entre as Coreias e as da China com o Japão. E não se tinha tanta consciência dos estragos que a invasão do Iraque ocasionara no equilíbrio do Oriente Médio.
  Havia o terrorismo, mas o Ocidente queria acreditar que o Boko Haram matava africanos e não ocidentais, que xiitas e sunitas se destruíam entre si, e assim por diante, sem abalar a confiança em que os conflitos entre as grandes potências não ocorreriam no pós-II Guerra Mundial: a crise dos mísseis em Cuba, em 1962, sepultara essa possibilidade. Depois dos ataques ao Charlie Hebdo e ao Bataclan, em 2015 em Paris, e de outros atentado sem locais simbólicos para o Ocidente, este se recordou das torres gêmeas de Nova York e foi obrigado a reconhecer a ameaça terrorista e a fragilidade da proteção que os Estados Unidos oferecem a seus cidadãos.
  O ano de 2016 desnudou possibilidades de conflitos de outro tipo, que mexem com os "grandes", com suas armas atômicas. Não que conflitos globais estejam na iminência de ocorrer, mas 2016 termina com a Rússia inconformada com seu pedaço na Eurásia (mais ainda com a insensatez de não a terem levado a sério como parceira do Ocidente), com a China sentindo-se forte o suficiente para dizer que sua ascensão ao poder mundial poderá fazer-se "de maneira harmoniosa", que não a temam, mas não a impeçam de ser dona de "seu mar", nem de voltar-se para Europa, muito especialmente para Rússia, na busca de rotas seguras de abastecimento energético, livrando-se das incógnitas do Pacífico e da "entente" necessária com os americanos. A Rússia rejeitou acordos balísticos, inclusive atômicos, e a Coreia do Norte explodiu novas bombas. Sobra dizer que a Índia e Paquistão, contendores antigos, permanecem com seu arsenal atômico intocado, o da China foi aperfeiçoado, e por aí vai.
  Para completar o lado desagradável da herança que 2017 receberá, os americanos elegeram um líder que é a favor de os Estados Unidos se afastarem das suas responsabilidades mundiais.
  Houve avanços, é certo, na questão da mudança climática. O Acordo de Paris, visando à redução dos gases de efeito estufa, dá sinal de esperança. A tragédia das guerras do Oriente Médio e o permanente desalento de grande parte das populações africanas desencadearam grandes fluxos migratórios. A despeito dos horrores desses episódios, as Nações Unidas e alguns países (destaque para Alemanha) estão se mobilizando para aliviar o sofrimento de milhões de refugiados.
  Diante desse quadro, é de imaginar que no próximo ano se tentem acomodações na ordem global. Ainda que os Estados Unidos, militar e economicamente, continuem a ser a maior potência mundial, sua hegemonia global está abalada. A China disputa o pódio, e o jogo que se dá no Oriente Médio, mais especificamente na Síria, expõe a emergência de atores regionais de peso (Irã e Turquia) e deixa entrever a forte presença da Rússia na área. A Europa pós-Brexit é uma incógnita. A Arábia Saudita, acima dos conflitos entre xiitas e sunitas, começa a se preocupar com a diminuição de sua área de influência e mostra disposição bélica no Iêmen. Resumindo: a ordem mundial, em vez de consolidar como um disfarce do poder americano, provavelmente se desenhará em 2017 como resultado de vários tabuleiros regionais de poder, com os Estados Unidos e a China em patamar superior. Melhor seria qualificá-la como desordem mundial.
  Há incerteza nas relações comerciais e econômicas. O mundo globalizado conseguiu ultrapassar a crise financeira de 2007/2008. O tempo revelou, no entanto, que a economia do conhecimento e das novas tecnologias eleva exponencialmente a acumulação de capitais, mas está longe de gerar empregos na proporção requerida pela população mundial, que continua crescendo. A globalização reduziu a pobreza absoluta em proporção considerável, embora tenha aumentado a diferença entre os que muito tem e os que quase nada ganham. Martin Wolf, em seus agudos comentários no Financial Times, assim como Thomas Piketty em seu rumoroso livro O Capital no Século XXI, vem alertando para esses problemas, sem soluções  à vista. Se, como alguns predizem, o ritmo das inovações diminuir e a demografia continuar a pressionar, as economias crescerão pouco e os problemas sociais ficarão mais severos. (...)
      Parte do artigo: FUTURO ESCORREGADIO na revista VEJA - Fernando Henrique Cardoso.

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